segunda-feira, 13 de agosto de 2018

David Bowie - Blackstar [2016]

O texto é de minha autoria. Aqui há interpretações próprias e um compilado de referências de outras fontes (citadas quando presentes). Se você é fã, curtiu as informações, só achou em português aqui, sabe que elas são verdadeiras, que eu não simplesmente copiei de alguém e quer repassar de alguma forma, por favor, dê o crédito como eu mesmo fiz no final do post. Muito obrigado!

Dados 


- Lançado no dia 8 de Janeiro de 2016, 69º aniversário de David Bowie, e 2 dias antes de sua morte
- O disco tem uma sonoridade jazz "espacial" bem pesado, experimental.
- Apenas 7 faixas, mas a mais longa delas, a faixa-título, tem praticamente 10 minutos.
- Não há letras na capa, mas os fragmentos das estrelas no rodapé soletram BOWIE.


1. Blackstar (9:57)
2. 'Tis a Pity She Was a Whore (4:52)
3. Lazarus (6:22)
4. Sue (Or in a Season of Crime) (4:40)
5. Girl Loves Me (4:52)
6. Dollar Days (4:44)
7. I Can't Give Everything Away (5:47)

- O CD tem 3 singles. Em ordem:
  • Blackstar (lançado 19 de novembro de 2015),
  • Lazarus (lançado 17 de Dezembro de 2015),
  • I Can't Give Everything Away (lançado 6 de Abril de 2016)



 

Cenário


De acordo com Tony Visconti, o produtor, Bowie e ele ouviam muito Kendrick Lamar na época (um compositor rapper). O objetivo era, "de muitas, muitas formas, evitar o rock & roll".  O musical Lazarus, inspirado no personagem interpretado em O Homem Que Caiu Na Terra, com letras de Bowie e estrelado por Michael C. Hall, também já estava sendo produzido. Doze meses antes de morrer, Bowie chamou um grupo relativamente desconhecido de músicos de jazz, The Donny McCaslin Group (imagem ao lado), no estúdio para começar a trabalhar no seu álbum final. Quando as sessões de gravação começaram, Bowie contou a Donny que estava doente, mas, de acordo com o próprio Donny, manteve seu bom humor e sua energia em todos os momentos.


Impressões


Blackstar causa uma fascinação que provavelmente nasce do medo. Ou talvez seja mais que isso, seja um pavor inexplicável. Tudo é fruto de uma contemplação do sentimento que o álbum apresenta. A junção das melodias evoca a tristeza. Se o ouvinte sabe do significado das letras, inexplicavelmente arranjadas (e daí o primeiro ponto positivo do trabalho), causa um incômodo ainda maior. A sonância é instigante, é misteriosa. O último trabalho de estúdio de Bowie é pesado, denso, difícil. E talvez, acima de tudo, não tão acessível como seus principais singles (mesmo aqueles da primeira fase). De início já é importante estabelecer: as sete faixas são excelentes.

Chega a ser um grande pecado chamar o disco de cacofonia como algumas resenhas do Metacritic disseram (poucas, mas existem -- lá, o álbum alcançou a nota 8,8/10). Claro que ele não é nada digesto na primeira audição. Verdade. Há que deixar o trabalho cativar, distribuir suas melodias ousadas ao seu tempo. Cada nota aos poucos se distingue uma das outras e os instrumentos tomam seus lugares. E não param de aparecer novos a cada repetição. O diferente pode assustar. Há estranhamento, fato, se não houver um pouco de familiarização com o lado experimental de Bowie (visto em Earthling, por exemplo). O complicado demora pra tomar forma. Ora, o público de jazz já é restrito, e de um jazz tão carregado como esse, classificado até como rock experimental, mais ainda. Seria muita leviandade julgar sem conhecimento. Algumas notas de trompete lembram um pouco o 18º trabalho de estúdio, Black Tie White Noise.


Épico. Não há outra forma de definir. Uma odisseia sobre o fim da vida. Como disse a revista Rolling Stone, a morte de Bowie revelou o Blackstar "como sua ruminação sobre a mortalidade – aflito, agridoce, pesaroso, se recusando a entregar-se a autopiedade mesmo ao cantar apaixonadamente suas palavras finais: "I Can't Give Everything Away" ("eu não posso dar tudo embora", "revelar tudo", ou, dependendo da interpretação, "perder tudo" - é difícil traduzir quando um verbo pode ter vários significados e brincar com eles), uma canção tão comovente como "Heroes.""

Como disse Tony Visconti, produtor de Bowie, "Sua morte não foi diferente de sua vida -- um trabalho de Arte."


O Que Sabemos - Blackstar e Lazarus

 

(Capa do single Blackstar)

Extremamente aberto a interpretações que esbarram em metalinguagem e em suas próprias referências artísticas, Blackstar flerta poeticamente com a triste metáfora de uma estrela em colapso rumo ao seu fim. O momento em que ela se apaga. Que deixa de ter luz. O nome, "estrela negra", em inglês, vem da expressão dada para uma lesão causada pelo câncer.

In the villa of Ormen
In the villa of Ormen
Stands a solitary candle
In the centre of it all
In the centre of it all
Your eyes

On the day of execution
On the day of execution
Only women kneel and smile
At the centre of it all
At the centre of it all
Your eyes
Your eyes




As referências já começam na faixa-título. The Villa of Ormen: remete a um lugar na Noruega, a cidade (vila?) em que uma antiga namorada de Bowie, Hermione Farthingale (na foto acima, junto com o baterista John Hutchinson), viajou em 1969 para aparecer no filme Song of Norway ("Canção do Sol da Meia Noite" no Brasil), sobre o compositor Edvard Grieg. O filme é baseado nos escritos de Milton Lazarus. "Lazarus", a terceira faixa. Coincidências? No videoclip de "Where Are We Now?" (single do CD anterior), Bowie usa uma camiseta com o nome desse filme.


No famoso fórum Reddit, comum pelo debate mundial e anônimo de teorias da conspiração, entre outros, a frase "in the Villa of Ormen" foi sugerida como um jogo de palavras. Nela estaria implícito outro conteúdo. Se lida rápida, soa como "the revealer of all men" (o revelador de todos os homens), ou seja, a morte.

Questionado na época do lançamento se a letra tinha a ver com Isis (uma das principais divindades na religião do Egito Antigo), Bowie recusou.


A música tem como cenário o "dia da execução" (o dia em que alguém morre, ou que morre contra sua vontade) e repete muitas vezes a expressão "at the centre of it all" (no centro de tudo). Essa é uma frase do ritual "The Star Sapphire" do ocultista Aleister Crowley, que Bowie era obcecado na década de 70. Além disso, Ormen significa "serpente" em norueguês (há uma serpente na foto de trás do álbum "Hours..."). O jornal The Guardian ainda lista o fato de que a roupa preta e prata que Bowie veste no clip de Lazarus (abaixo) é igual a uma que veste dentro da capa do disco Station To Station (ao lado). Nessa foto antiga de 1974 (tirada pelo fotógrafo Steve Schapiro), ele aparece desenhando uma "Árvore da Vida" inspirada em Crowley. Essa "árvore" é como um diagrama que, em linhas gerais, representa o universo espiritual. Esse diagrama assume muitas formas dentro da Qabala.

De acordo com uma matéria da revista Super Interessante: "Aleister afirmou, em sua meia-idade, ter encontrado o elixir da vida. “Eu o tomei quando tinha 40 anos”, escreveu. “Um dia acordei e percebi que tinha perdido toda a minha maturidade.” Ele chegou a dizer que os efeitos foram tão duradouros que, aos 47, ele se sentia como se tivesse 30 anos"

Albin Wantier, responsável pela introdução do livro de fotos de Schapiro ("Bowie" - lançado em Abril de 2016), disse:  "Aparentemente, [no videoclip] ele conseguiu encontrar o significado que estava procurando. A conexão entre ambas as imagens, separada por 40 anos, é atordoante... Ele resolveu seu enigma, e a cortina pode então cair." Isso lembra bastante o depoimento de Crowley, não lembra?


Wantier também garante que alguns símbolos do CD e do vinil de Blackstar remetem aos rascunhos desenhados por Bowie na parede do ensaio de 1974. "As imagens de Blackstar", disse após checar com alguns amigos, "fazem parte de uma fórmula química que descreve os vários estágios de uma fusão nuclear, que leva a formação de um sol. Ou, quem sabe, de uma estrela negra."

"Do momento em que Bowie chegou, parecemos nos dar bem. Incrivelmente inteligente, calmo, e cheio de ideias," disse Schapiro num artigo. "Ele falou bastante sobre Aleister Crowley, de cujo escritos esotéricos ele gostava muito na época. Quando David ouviu que eu tinha fotografado Buster Keaton, um de seus grandes heróis, nos tornamos amigos instantaneamente."

Ainda em Blackstar, há questionamentos como: quantas vezes um anjo cai? Ou, quantas pessoas preferem mentir ao invés de serem somente evasivas?  Além disso, ele afirma: não sou uma estrela de cinema (ele fez filmes), não sou uma estrela do pop, não sou uma estrela pornô ("O Homem Que Caiu Na Terra" e "Fome de Viver", por exemplo, possuem algumas cenas de nudez). "Não sei responder porquê (sou uma estrela negra)".

Black Star (separado) também é o nome de uma pequena música de Elvis Presley, um dos heróis de Bowie. Ambos têm a mesma data de aniversário. Bowie até disse uma vez, brincando, que "estupidamente" um dia até chegou a acreditar que isso significava alguma coisa. Na música, Elvis diz que "cada homem tem uma estrela negra sobre seu ombro, e quando um homem vê sua estrela negra, ele sabe que seu tempo chegou".


O videoclip mostra nosso astro com o rosto tampado por gazes e botões no lugar dos olhos (seus famosos olhos diferentes, resultado de uma briga na juventude) parecendo uma espécie de alienígena narrando a história de um astronauta (si mesmo como Starman, Major Tom) caído atrás de uma grande estrela negra. O astronauta já é uma caveira dentro da roupa quando uma mulher de outro planeta aparentemente o vem buscar.


"No centro de tudo seus olhos". Os olhos são as janelas da alma como dizem. O universo, no vídeo, ou um buraco negro, parece muito como a íris de um olho e sua pupila dilatada (como Bowie tinha). No centro de tudo está a alma? Os olhos também são muito ressaltados durante o vídeo. Os olhos de Bowie e os olhos de uma mulher. A ideia principal da música pode ter explicação nesse trecho, que é essencial:

"Something happened on the day he died
Spirit rose a metre and stepped aside
Somebody else took his place
And bravely cried"

"algo aconteceu no dia em que ele morreu / espírito subiu um metro e se afastou / outra pessoa tomou seu lugar / e chorou bravamente" Reencarnação ou desencarnação, o importante é perceber que no vídeo só existem mulheres ao redor da caveira no momento em que ela chega. O que sobrou do astronauta é "oferecido" por uma mulher que veste preto (a figura da morte?) a outras mulheres que balançam o corpo em sintonia. Talvez pois só as mulheres podem conceber? O que torna o verso do começo "Only women kneel and smile" (Somente mulheres ajoelham e sorriem) mais misterioso. E os três indivíduos pendurados em cruzes no meio do clip? Simbolizam as dificuldades terrenas quando a alma é encarnada? Ou aqueles que não conseguiram ainda reencarnar? Estão presos de alguma forma e sofrendo por isso? Bom, são apenas especulações.


Existe um outro ritual além do Star Sapphire, já mencionado. Ele se chama The Star Rubi. Na internet é possível encontrar algumas referências e apenas pessoas que realmente entendem podem dar detalhes maiores. São rituais que envolvem invocações, por exemplo. Dá para perceber que, no videoclipe, a mulher com a caveira nas mãos carrega um colar com uma pedra parecida, rubi (1ª imagem abaixo). Dessa forma, tem-se a ideia de 3 pedras ao todo, cada uma para um ritual: safira, rubi e a pedra preta. Sapphire, Rubi, e Black (star).

Bowie parece querer dizer algo como se existisse um ritual seu. Em uma das cenas, há um livro carregado em uma pose no mínimo altiva. Esse livro aparenta ser um manual com a estrela negra na capa. Mais uma vez, no fórum Reddit muitos fãs especularam a possibilidade de o álbum todo ser um feitiço ou um ritual. Talvez ele estivesse tentando passando instruções com esse livro. É curioso reparar que ao seu lado existem 3 pessoas: um homem branco, um homem negro e uma mulher. Essa mulher parece retornar no clip de "Lazarus" embaixo da cama de Bowie (3ª imagem abaixo).


Johan Renck, diretor do videoclip de Blackstar, começou a desenvolver os rascunhos para as ideias num processo colaborativo de dois meses em que Bowie mandava desenhos a Johan e dizia: "Faça o que quiser com esses desenhos."



Todas as letras brincam com a subjetividade. É igualmente provável que o significado delas não seja nada disso, ou seja outro. Suas composições dão margem pra quase qualquer coisa.

Em Outubro de 2015 o vídeo final, Lazarus, foi filmado. A ideia de uma cama de hospital, no entanto, não tinha a ver diretamente com a doença, mas devido ao aspecto bíblico do homem que ressuscita. A intenção de David, no começo, era fazer apenas um "vídeo-performance". A semana de filmagem foi o momento em que Bowie soube que sua doença estava em estágio terminal.

A letra de Lazarus diz: "Olhe aqui pra cima, estou no céu / Tenho cicatrizes que não podem ser vistas / Tenho drama, que não pode ser roubado / Todo mundo me conhece agora / Olhe aqui pra cima, cara, eu estou em perigo / Não tenho nada a perder / Estou tão alto [de drogas, remédios, ou até mesmo em relação a altura no céu] que meu cérebro gira / Deixei cair meu celular lá pra baixo / Não é assim que eu sou? [talvez no sentido de: não é bem a minha cara fazer isso?]"

 (Capa do single Lazarus - novamente, o olho "no centro de tudo")


O Que Sabemos - 'Tis a Pity She Was a Whore e Sue (Or In a Season of Crime)

 

"'Tis a Pity She Was a Whore" tem o mesmo nome de uma peça de teatro inglesa do século 17 e foi lançada originalmente como B-Side do single "Sue (Or In a Season of Crime)" (incluída primeiro no Greatest Hits de comemoração aos 50 anos de carreira, Nothing Has Changed, de 2014, e posteriormente regravada para o Blackstar).

Bowie chegou a dizer que a música, 'Tis a Pity, foi inspirada pela destruição causada na Primeira Guerra Mundial. "Se os Vorticistas escrevessem rock provavelmente soaria assim", completou. (Vorticismo foi um movimento das artes plásticas descrito por Ezra Pound, um dos seus principais nomes, como uma espécie de impressionismo acelerado.) "'Tis a Pity" tem uma leve batida de hip-hop aliada ao sax de forma livre do jazz.

A peça do autor John Ford ainda é um dos trabalhos mais controversos da literatura inglesa pois ela falha em condenar a paixão incestuosa de seu protagonista por sua irmã, Annabella.

E qual o motivo de "'Tis a Pity" ter sido lançada como B-Side de "Sue"? A Annabella da história trágica de Ford tem o nome transportado para Sue na outra realidade da música? Bom, de alguma forma elas parecem dialogar entre si, principalmente na força da figura feminina entre as fugas, os crimes e a morte.

Sue precisa descansar e acabou de voltar do hospital. Isso é o que dá pra saber de início. Está tudo bem com o Raio-X. Ela havia dito algo sobre como queria a virgem em seu túmulo, mas essas palavras são "muito sombrias" pra falar. Ele sabe que Sue tem um filho, mas no final ela foi embora "com ele" deixando apenas uma nota escrita de noite. Quem é ele? Foi embora como?

Annabella socou o eu-lírico como se fosse um homem e agora ele chora. "O preto atingiu o beijo" (o beijo se tornou uma mancha roxa - em inglês não se diz roxo, mas preto). Essa é sua maldição. "Aquilo foi patrulha. Isso é guerra." Ela roubou a bolsa. Feriu a amante. "Era uma pena que era uma puta".

É impossível não ver a carga dramática em ambas. As duas histórias são agressivas em suas imagens fragmentadas, inquietas em seu ritmo, e mantêm um tom noir, como o videoclip de Sue (lançado na época em que era apenas single - foto abaixo), combinando perfeitamente com a textura do jazz. Inclusive, "Sue" chega a ser o exemplo mais forte de jazz do álbum todo.


O blog Bowie Songs (https://bowiesongs.wordpress.com/2017/02/16/tis-a-pity-she-was-a-whore/) fez uma relação biográfica das duas músicas. "Bowie, aparentemente tendo sofrido múltiplos infartos nos anos 2000, lidou com notícias médicas ainda piores. Por isso as referências a doença e roubo, e a ideia de que a vida não é mais uma peleja, mas se tornou uma batalha final que consome, uma batalha em que o artista sabe que vai perder no final."

O clima de violência e impressionismo dessas duas faixas se ligam diretamente ao caráter criativo da próxima, Girl Loves Me.

(Capa de 'Tis a Pity She Was a Whore lançada originalmente em 10 de Novembro de 2014 como um single sem álbum de forma digital -- posteriormente como B-Side e depois incluída no Blackstar)



O Que Sabemos - Girl Loves Me


Em "Girl Loves Me" o neologismo de Anthony Burgess no livro "Laranja Mecânica" (posteriormente um filme de 1971, imagens abaixo) - o Nadsat - aparece ao lado da Polari, uma linguagem de gíria usada na Grã-Bretanha por alguns atores, povos circenses, apresentadores de rua, lutadores, criminosos, prostitutos e pela sub-cultura gay. Antes da legalização da homossexualidade, no final dos anos 60 na Inglaterra (apenas para homens com 21 anos ou mais), por exemplo, a Polari era usada como um código secreto entre os gays para que a polícia não os entendesse e os prendesse. Essa linguagem passou a ser usada principalmente nos clubes gays dos anos 70. O produtor do álbum, Tony Visconti, comentou sobre Girl Loves Me: "As letra são malucas, mas muito do povo Britânico, especialmente os Londrinos, vão entender cada palavra."


"Cheena so sound, so titi up this malcheck, say
Party up moodge
Nanti VELLOCET round on Tuesday
Real bad dizzy snatch
Making all the omeys mad - Thursday
Popo blind to the polly in the hole by Friday
Where the fuck did Monday go?
I'm cold to this pig and pug show
I'm sittin' in the chestnut tree
Who the fuck's gonna mess with me?" 




Em uma tradução MUITO livre graças aos trocadilhos: "Mulher, eu confio em você, arrume esse garoto, vai. / Divirta-se, cara. / Sem drogas por perto na Terça / Uma boa vagina (?) bem doidona / Deixando todos os homens loucos - Quinta / A polícia não entende o que a gente diz nos lugares na Sexta / Pra onde foi a Segunda? / Eu já nem ligo pra esse show todo / Estou sentado em um castanheiro / Quem vai se meter comigo?"

É muito engraçado perceber como "Popo" pode ser entendido como "Polícia", enquanto "Polari" está escondida sob a palavra "polly". "Buraco" [hole] poderia ser "as quebradas noturnas", embora a expressão "in the hole" seja "quebrado", "sem dinheiro". Já "sound" pode ser adjetivo pra uma pessoa que é genuína, verdadeira, que não decepciona, ou confiável. Certamente uma forma de elogio, de agrado, ao se referir a essa figura tão misteriosa.

Tudo fica um pouco mais retorcido se considerarmos que Bowie deu uma pequena mexida até no Nadsat. “Yarbles” (bolas) virou “garbles,” “spatchka” (sono, dormida) virou “spatchko,” e “malchick” (garoto) é cantado como “malcheck.”

Essa definitivamente não é uma canção encontrada traduzida da forma correta em sites brasileiros. Pra dizer a verdade, não há nenhuma tradução correta. Cheena significa "mulher" em Nadsat, vem de zhenshcheena, em russo. Claro, também é um termo um tanto quanto depreciativo para Chinesa ou algo que tenha influência chinesa. Alguns fãs pela internet, em fóruns e comentários em outras línguas, levantam inclusive a hipótese de "Cheena" ser uma Drag Queen dado o contexto. "Watch her garbles",  poderia ser tanto "olhe sua audácia", sua "coragem", "olha que graça", como "olhe as bolas dela". Nesse sentido, a ironia do título, "Girl", fica melhor ainda. Aqui existe mais uma referência, então, aos trabalhos prévios de Bowie, especificamente na era Ziggy Stardust, quando o glamrock estava em alta e seu visual andrógino despertava a atenção de milhares de fãs.  Homem ou mulher? Os dois. Sabe-se que o figurino nessa época, apresentado no programa Top of the Pops, um conjunto de jaqueta e calça apertadas com com botas e laços vermelhos, foi inspirado em Laranja Mecânica.

"You viddy at the cheena
Choodesny with the red rot
Libbilubbing litso-fitso
Devotchka watch her garbles
Spatchko at the rozz-shop
Split a ded from his deng deng*
Viddy viddy at the cheena"

"Você olha pra mulher
Maravilhosa com os lábios vermelhos
A gente se beija
Linda, olha que graça
Dormindo na delegacia
Separando um velho do seu dinheiro*
Olha, olha aquela mulher"


*Deng é uma palavra em Nadsat para "dinheiro" e tem sua origem no russo, "dengi", que também é dinheiro. Ded significa "velho", e vem de "ded" em russo, que significa "avô". Nesse verso, a figura da música se aproveitaria de velhos para pegar o dinheiro deles? Uma espécie de prostituta? Ou o encrenqueiro boêmio pegaria o dinheiro dos velhos, os pais?

A árvore de castanhas, [the chestnut tree] o castanheiro, é comumente tida como um símbolo de justiça e honestidade. No inglês, ouve-se bastante o termo "castanheiro" para uma história que foi contada muitas vezes. Castanheiro também é o nome do Café no livro "1984" (de George Orwell -- também um filme, imagem abaixo), uma distopia, tal qual Laranja Mecânica. Nessa história, o significado vai ainda mais além. Castanheiro acaba por significar a traição do personagem principal Winston por Julia, e de Julia por ele. Aqui, haveria também a subversão de algo bom como "justiça e honestidade". Honestidade virou mentira. E inversão é exatamente o que acontece nas distopias. Na letra, ele não estaria "sentado num castanheiro", mas ele estaria traindo alguém nessas noites de bebedeiras e drogas.


Novamente, o blog Bowie Songs (https://bowiesongs.wordpress.com/?s=girl+loves+me) assinalou: Bowie já tinha usado linguagens secretas antes. O dialeto de Laranja Mecânica aparece em "Suffragette City” (“say droogie don’t crash here!”), música do período Ziggy Stardust, época em que a adaptação de Kubrick para o cinema foi seu guia de ideias, como mencionado. David Bowie era muito fã do filme. Nele, o personagem comete atos de "ultraviolência" antes de sofrer uma lavagem cerebral que tem por finalidade reprimir qualquer ato condenável. (Observação: no álbum "Low" também existe outras formas de neologismos).


Em "Girl Loves Me", além de fazer referência a esse seu excêntrico meio de criação no passado (as palavras novas), a letra levemente humorada narra uma semana de comportamentos. Aqui tudo é mais agitado. Sem drogas na Terça, deixando todos os homens loucos na Quinta, um aviso para não se preocupar com o dinheiro gasto até a Sexta... Uma mulher de lábios vermelhos entra em cena e, pelo que parece, faz com que o protagonista durma na cadeia uma noite... Observando ela ao seu lado tirar dinheiro de um velho. Mas... "where the fuck did Monday go?" Para onde foi a Segunda-feira? É quase como uma forma de dizer "vamos aproveitar agora pra depois parar com tudo isso". Ainda numa interpretação fantástica do blog Bowie Songs, "arme um esquema com os velhos e pegue o dinheiro deles, foda nas ruas, passe a noite no xadrez", "talvez literalmente uma continuação de "Dirty Boys" (do álbum anterior, "The Next Day"). A Segunda-feira pode ser, literalmente, o tempo que passou. De repente, depois de tudo, pra onde ele foi? Novamente, uma reflexão, agora descontraída e festiva, sobre o fim da vida.


O Que Sabemos - Dollar Days e I Can't Give Everything Away


"Dollar Days" se desdobra como uma carta aberta: estou caindo, estou tentando, mas morrendo também, e já vi de tudo, não tenho inimigos. Os dias de dólares, de sexo de sobrevivência, de garotas pagas que o fazem sofrer, nada disso é novo. A letra é quase uma contemplação de toda a euforia presente em "Girl Loves Me". Se "Girl Loves Me" pode ser vista como continuação de "Dirty Boys", pode-se muito bem também perceber "Dollar Days" como a continuação de "Girl Loves Me".

Sobre "I Can't Give Everything Away", a última faixa do álbum, Tony Visconti contou a revista Rolling Stone: "Eu não sei ao quê a canção se refere, mas o que ele entrega [gives away] é o que ele escreve sobre. Acho que muitos escritores sentem como 'se você quer saber sobre mim, apenas estude minhas letras'. É por isso que ele não dá entrevistas. Ele já revelou bastante em entrevistas passadas, mas acho que sua vida agora é sobre sua arte. É totalmente sobre o que ele está fazendo agora."

Com uma melodia de tocar qualquer fã, alinhavada por um solo de guitarra sem igual nos últimos minutos (notável, talvez único, em um álbum essencialmente de jazz), a última faixa se despede com esse pensamento:

"Seeing more and feeling less
Saying no but meaning yes
This is all I ever meant
That's the message that I sent"

("Percebendo mais e sentindo menos
Dizendo não mas significando sim
Isso é tudo o que eu sempre quis
Essa é a mensagem que eu enviei")


Referências, Links e Fontes Interessantes


Documentário da BBC, "David Bowie - The Last Five Years", de 2017

Livro "Bowie - A Biogafia", de Marc Spitz, lançado em 2009

https://www.rollingstone.com/music/music-lists/the-100-greatest-songs-of-the-century-so-far-666874/blackstar-david-bowie-667031/

https://www.rollingstone.com/music/music-lists/50-best-albums-of-2016-119690/david-bowie-blackstar-3-120037/

https://www.theguardian.com/music/2016/jan/21/final-mysteries-david-bowie-blackstar-elvis-crowley-villa-of-ormen

https://www.imdb.com/title/tt0066393/

https://www.reddit.com/r/creepy/comments/40tpit/in_blackstar_david_bowie_mentions_the_villa_of/

https://www.newyorker.com/culture/culture-desk/the-beautiful-meaninglessness-of-david-bowie

https://www.huffpostbrasil.com/entry/never-before-published-photos-reveal-the-clues-david-bowie-left-before-his-death_us_570bea59e4b0836057a1d8fc

http://tim.maroney.org/CrowleyIntro/The_Tree_of_Life.html

http://time.com/4239531/making-love-with-his-ego-david-bowie-and-the-photographs-of-steve-schapiro/

https://www.rollingstone.com/music/music-news/hear-david-bowies-dizzying-new-song-tis-a-pity-she-was-a-whore-242158/

https://www.imdb.com/title/tt0069678/

https://bowiesongs.wordpress.com/2017/02/16/tis-a-pity-she-was-a-whore/

https://bowiesongs.wordpress.com/?s=girl+loves+me

https://www.rollingstone.com/music/music-features/the-inside-story-of-david-bowies-stunning-new-album-blackstar-231351/

http://www.dailymail.co.uk/news/article-3402014/David-Bowie-s-secret-reunion-middle-class-beauty-broke-heart.html

http://www.metacritic.com/music/blackstar/david-bowie

http://portsmouthpoint.blogspot.com/2015/10/a-clockwork-orange-nadsat-and-joy-of.html

https://www.enotes.com/homework-help/1984-what-chestnut-tree-symbolize-why-did-orwell-648542

https://super.abril.com.br/mundo-estranho/a-vida-e-os-estudos-de-aleister-crowley-mago-do-ocultismo/

http://g1.globo.com/musica/noticia/2016/01/david-bowie-foi-da-androginia-metamorfose-relembre-estilo-e-trajes.html

https://genius.com/David-bowie-girl-loves-me-lyrics